Terça-feira, 10 de Março de 2009

Entrevista ao rapper Valete

 

“Não fui «programado» para a fama”
 
 
D
e andar gingão, Valete aproxima-se da Universidade Autónoma de Lisboa. Carapuço na cabeça e calças largas a cair pela cintura, apresenta-se para a entrevista. Objectivo: falar sobre a sua carreira, desde o primeiro álbum até aos dias de hoje, apoiado por uma editora e “pelas ruas”. Filho de São-tomenses emigrados em Portugal, Valete, tal qual Martin Luther King, disse um dia:“Eu tenho um sonho.” Persistente nos objectivos, lutou contra tudo e todos. E passou de Valete a Ás de trunfo.
 
Há alguns anos, o hip hop deixou de ser apenas apreciado pelas massas suburbanas e chegou à classe média. Acha que a sua mensagem deixou de ser periférica e suburbana?
Sim e considero isso muito positivo. No início, representava uma comunidade. Era a voz dos oprimidos. Acabei por descobrir que, ao fazer música, podia passar a minha mensagem para muito mais gente. Através do rap consegui representar a minha comunidade e fazê-la chegar às classes médias. É um estilo de música que ajuda as pessoas a compreender melhor os problemas. Permite levar a verdade às pessoas. A Comunicação Social ofusca e tenta deturpar a realidade das comunidades suburbanas e de emigrantes. O rap e o hip hop fazem o contrário. Mostram o sentimento dessas pessoas, o seu estilo de vida, pensamento e sonhos.
 
Iniciou carreira em 1997, ao lado de Adamastor. Juntos formaram o Canal 115. Como foi essa experiência?
Foi uma experiência muito positiva. O Adamastor é o meu melhor amigo. Tínhamos uma relação quase familiar. Se um de nós tinha um problema, recorria ao outro e juntos resolvíamos a questão. É claro que também discutíamos mas essas desavenças fazem parte dos grupos.                                                                             
 
Depois de um intervalo na música dedicou-se aos estudos, para tirar o curso de Ciências da Comunicação. Porquê esta área?
Sempre encarei o rap como um exercício jornalístico. Sentia-me uma espécie de repórter dos subúrbios, das comunidades africanas e dos emigrantes. A ideia romântica que tenho do jornalismo, e que muita gente tem quando entra nesse curso, é que um jornalista representa a população. Diz verdades. Dá a conhecer o que, para a maioria das pessoas, é desconhecido. Entrei no curso porque queria informar e divulgar aquilo que era de interesse público. Mas, a meio do curso, deparei-me com várias desilusões. Percebi como é que funciona o sistema de Comunicação Social. Existem muitas corporações económicas por trás dos Media que condicionam a informação. Só passa para o público o que as corporações acham que deve passar. Entrei no curso apaixonado e saí decepcionado.
 
“A música está massificada, plastificada e uniformizada”
 
Na faixa Pela Música critica as rádios, os canais televisivos e as editoras por imporem um gosto musical formatado. Se pudesse fazer alterações nesses meios, o que mudaria?
A Comunicação Social ligada à divulgação musical deve respeitar a diversidade. Se numa comunidade musical existem movimentos com força como o hip hop, heavy metal, rap, techno, reggae, jazz, fado, é importante que a Comunicação Social reflicta isso. Na rádio passam sempre as mesmas músicas, refrães e artistas. Há uma formatação musical. As pessoas que “consomem” determinada rádio, principalmente os mais jovens, pensam que só aquela música existe. Tudo o resto é alternativo e tem de ser segregado. A música, por mais alternativa que seja, deve ser divulgada. A Comunicação Social deve ter esse papel. Os jovens estão muito ligados a essa formatação fácil, como acontece na MTV. Querem e estão habituados a músicas fáceis. Foram musicalmente educados dessa forma. As músicas têm de ser simples, fáceis e minimalistas. Tudo o que for complexo é rejeitado. Nos EUA, as crianças têm grandes músicos a ensiná-las nas escolas. Em Portugal, isso não acontece. Após o 25 de Abril, surgiram muitos grupos que foram bem-sucedidos. A partir do ano 2000 são poucos os artistas que conseguem subsistir nesta indústria. A música está massificada, plastificada e uniformizada.
 
Em 2002, regressou ao meio musical, a solo, com o álbum Educação Visual. Porque decidiu trabalhar sozinho?
É muito difícil trabalhar em grupo. Dava-me bem com o Adamastor mas era muito difícil gerir o trabalho. Tínhamos ideias diferentes. Somos muito amigos mas, a nível de personalidade, muito diferentes. Queria que o trabalho tivesse uma cara, mensagem e sonoridade, e ele não concordava. Então parámos, pensámos, conversámos e decidimos que a melhor solução era fazermos as nossas carreiras a solo.
 
Como caracteriza este trabalho?
É muito especial. Comecei do nada. Não tinha dinheiro, estúdio, editora, rigorosamente nada. Não sabia o que fazer e como fazer. Pedi dinheiro a amigos, lutei e nunca desisti porque sabia que tinha de o fazer. É algo que muitos músicos têm de perceber. Podemos não ter editoras, estruturas, rádios que nos apõem mas, se gostamos de fazer música, temos de seguir o nosso sonho. A música vai sempre existir, independentemente da indústria. Tendo isso em mente, fui, tentei, lutei e consegui.
 
“É importante conhecer a diversidade no rap
 
Como surgiu a ideia de fazer Liricistas, uma música repartida em dois?
Foi engraçado porque, inicialmente, não era essa a ideia. Convidar o Fiuzze e o Haze, dois mc´s do Porto; o Chalage e o Adamastor, de Lisboa. O objectivo era mostrar às pessoas as diferenças entre o rap do Norte e do Sul. Separei a faixa em dois para definir as duas escolas. Escolhi estes artistas por serem alguns dos rappers mais “batidos” nestas áreas. São duas formas diferentes de fazer rap. Achei interessante dar a conhecer as diferenças entre elas. É importante conhecer a diversidade no rap. Existem mc´s que escrevem mais letras sobre batalhas, outros sobre política, amor … É bonito sentir essas diferenças.
 
Ainda no primeiro álbum, lançou a música Pseudo mc´s. A quem se dirigia?
Aos rappers que não percebem o quanto é difícil fazer esta música. Não entendem que esta profissão exige muita disciplina e empenho. Passam uma imagem às pessoas de que fazer rap é fácil e banal. Não é. O rap em Portugal (e em todo o mundo) sofre com isso. Eles pensam que é “baza aqui escrever umas letras” e já está. Não é assim. Para ser agradável e ter impacto temos de nos dedicar muito. Aprender a escrever, a ter flow, compor música, fazer refrães, perceber os ritmos, estudar o bit, os tempos…É preciso uma educação musical muito extensa. É a falta de preparação desta massa de mc´s que estava a aparecer na altura, denegrindo a imagem dos verdadeiros rappers, que eu critiquei. Eram os pseudo mc´s.
 
Acha que o seu trabalho exerce algum tipo de influência na nova geração de mc´s?
Sim. Sinto isso. Muitos manifestaram que Educação Visual foi um álbum muito importante para eles. O álbum é considerado uma referência no rap português. Outros, que nem gostavam de rap, começaram a gostar a partir daquele trabalho. Não podia ter melhores elogios. Senti que criei uma coisa especial, sobretudo para os mais novos. Os músicos têm de ter noção que a faixa etária entre os 13 e os 18 anos é muito susceptível de ser influenciada. Os músicos podem influenciar esses jovens, influenciar para tornarem o mundo melhor. Podem criar um novo movimento. Vi e senti isso com o primeiro álbum.
 
“Sou socialmente incorrecto”
 
Em 2005, lançou o álbum Serviço Público. Exprime ideias revolucionárias sobretudo na faixa Anti-herói. Considera-se um revolucionário?
Sim, a música define-me. Não sou um revolucionário capaz de agarrar numa pistola e, contra tudo e todos, fazer um golpe de Estado (risos). Não. Revejo-me na música porque sou um inconformado. Quero mudar o status quo. Anti-herói é quem, em pequenas coisas, tenta mudar o sistema. É quem luta por um mundo melhor.

Na música Roleta Russa alerta para o uso do preservativo, de forma a prevenir doenças sexualmente transmissíveis. Aborda o tema como se estivesse a contar um conto. Acha que essa abordagem pode “ofuscar” a mensagem, já que algumas pessoas podem tomá-la como um conto erótico e não como um alerta para um problema sério?
Sou muito impúdico. Sou socialmente incorrecto. Gosto de trazer a rua para a música com palavrões e informalidades. Há pessoas que se encantaram com todo o erotismo e pornografia da música. Mas, para mim, é sempre uma vitória se uma em cada cem pessoas captar a verdadeira mensagem. Se uma delas travar maus comportamentos depois de ouvir aquele som. Além disso, acho que a forma como alertei para o problema foi a melhor. Tem muito mais eficácia do que 50 cartazes a dizer “Usa o preservativo”. As campanhas de sensibilização são moralistas, muito corny, e os miúdos não gostam de ouvir. Não lhes fica no ouvido. Acho que a minha mensagem é facilmente captada.
 
Gosta de chocar?
Tenho formação em Comunicação e especialização em Marketing. Não gosto de chocar gratuitamente. Mas acho que tudo o que digo tem de ter impacto, eficácia. Tento transmitir algo que as pessoas sintam. As pessoas têm de estar atentas ao que estão a ouvir. Preocupo-me em rimar coisas explosivas. Em chocar para captar a atenção.
 
O seu blog, no My Space, conta com mais de 250 mil visitas, sendo o segundo mais visitado em Portugal. Como se sente em relação a isso?
Percebi que a Internet é um espaço democrático. As pessoas visitam os sites, os blogs, porque querem visitar e não porque lhes são impostos. Não existe publicidade que imponha tal coisa, como acontece na rádio e na televisão. Não tenho representação nos meios de comunicação mas tenho a representação das ruas. As pessoas gostam do que faço. Os miúdos percebem e seguem o movimento. Muitas rádios não querem “passar” a minha música. A MTV recusou-se a transmitir o videoclip da música Anti-herói. Mas acabou por “passar” porque os miúdos votaram tanto nela, através de hitlists, que a MTV teve de “passar”. Sinto que as ruas estão comigo mas que as corporações, os meios de divulgação musical, estão contra mim.
 
“Não quero ser estigmatizado”
                                                                                                                           
Acha que este impacto merece alguma prudência ao abordar temas como a religião ou a política?
Não me quero condicionar por nada. Estou a criar um novo álbum cuja mensagem é “não te deixes influenciar por nada”. É uma coisa quase budista. É estar num estado Nirvana. É um estado emocional relaxante em que não se sente pressão. Só assim, o ser humano é livre. Quando uma pessoa começa a sentir pressão do pai, da mãe ou de outra pessoa qualquer, limita a sua liberdade. Fica condicionada. Começa a ser o que os outros querem que seja. Sei que quero um mundo diferente. Vivo nos subúrbios. Quero fazer a representação da minha comunidade. Mas não quero ser estigmatizado. Não quero estar “preso”. Vou continuar a dizer o que sinto, mesmo que as pessoas não aceitem. Quero ser cada vez mais livre.
 
O que é que os fãs podem esperar do novo álbum?
Até hoje, tive uma trajectória quase independente. Uma promoção quase amadora, sem uma estrutura de apoio. No novo álbum, vou começar a promover as músicas. Vou fazer videoclips, letras e bits melhores. Estou a evoluir como músico. Quero actuar ao vivo. Já não o faço há cinco anos. Quero correr o país e levar a música às pessoas. Sinto que faço mais do que música. Criei um movimento ideológico e quero mostrar isso ao mundo.
 
No início da sua carreira, dizia nas rimas “Não curto exploração de imagem, sou só pensamento, nunca hás-de ver o Valete na TV, não tenho corpo, não tenho matéria”. Conseguiu manter essa postura?
Não. Acho que a única coisa constante no ser humano é a mudança. Muita coisa que disse em 2002 não defendo em 2008. O que disse na altura foi genuíno. Sentia aquelas coisas. Mas cresci. Ganhei experiência e “absorvi” muita coisa. É natural que as ideias se tenham alterado. Na altura, queria fazer um ou dois álbuns e desaparecer. Não era matéria, apenas pensamento. Depois, percebi que muitas pessoas se identificaram comigo, com a minha atitude e personalidade. Se continuei a minha carreira, devo-a às pessoas.
 
“Vamos criar a nação lusófona de hip hop
 
De que forma é que a exposição mediática tem afectado a sua vida pessoal?
Não fui “programado” para a fama. Quando as pessoas me abordam na rua fico sem saber o que dizer. Incomoda-me. Mas é um processo irreversível. Vou ter de aprender a lidar com isso, apesar de não ter muito a ver comigo.
 
De todas as músicas, qual é a sua preferida?
Várias. Revelação e Anti-herói são algumas. Mas, preferida mesmo, é a faixa Roleta Russa. Só comecei a gostar depois de sentir a aceitação dos fãs. Musicalmente não é muito atraente. Mas consegui criar quase um formato de áudio-novela, um formato em que as pessoas entram na história. Criei uma lírica visual. Isso é muito bonito e também difícil de concretizar. Mas consegui. Daí que a música seja tão especial para mim.
 
Projectos para o futuro?
A minha editora, Horizontal, sugeriu um projecto interessante. Consiste em juntar o rap de Portugal ao de todos os PALOP´s. O nosso rap será ouvido nos vários países de língua portuguesa e vice-versa. Vamos começar um intercâmbio para editar alguns mc´s moçambicanos, angolanos… Dando-lhes oportunidade de fazer uma carreira em Portugal. Vamos encurtar distâncias e criar uma nova nação. A nação lusófona de hip hop.
música: Roleta Russa (Valete)
publicado por Vanessa Rodrigues às 15:58
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